Recentemente
a 6ª Turma do STJ decidiu que a exigência da “representação”
para os delitos de estelionato, introduzida no Código Penal,
incidiria sobre as ações penais em andamento, notadamente em razão
da retroatividade da regra mais benéfica (condicionada ao trânsito
em julgado), bem assim invocado a aplicação analógica do que o STF
decidiu em relação ao art. 91 da Lei nº 9.099/95.
A
regra aplicada em o seguinte teor:
Art.
171, CP: […]
§
5º Somente se procede mediante representação, salvo se a vítima
for: (Incluído
pela Lei nº 13.964, de 2019)
I
- a Administração Pública, direta ou indireta; (Incluído
pela Lei nº 13.964, de 2019)
II
- criança ou adolescente;(Incluído
pela Lei nº 13.964, de 2019)
III
- pessoa com deficiência mental; ou (Incluído
pela Lei nº 13.964, de 2019)
IV
- maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz.(Incluído
pela Lei nº 13.964, de 2019)
Respeitosamente,
o equívoco está em três partes fundamentais da argumentação
utilizada no julgamento colegiado.
Vamos
primeiro à ementa do julgado do STJ:
HABEAS
CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. PACOTE ANTICRIME. LEI
N. 13.964/2019. § 5º DO ART. 171 DO CP. AÇÃO PENAL PÚBLICA
CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO COMO REGRA. NOVA LEI MAIS BENÉFICA.
RETROATIVIDADE. ART. 5º, XL, DA CF. APLICAÇÃO DO ART. 91 DA LEI N.
9.099/1995 POR ANALOGIA.
1.
As normas que disciplinam a ação penal, mesmo aquelas constantes do
Código de Processo Penal, são de natureza mista, regidas pelos
cânones da retroatividade e da ultratividade benéficas, pois
disciplinam o exercício da pretensão punitiva.
2.
O processo penal tutela dois direitos de natureza pública: tanto os
direitos fundamentais do acusado, voltados para a liberdade, quanto a
pretensão punitiva. Não interessa ao Estado punir inocentes,
tampouco absolver culpados, embora essa última solução se afigure
menos danosa.
3.
Não é possível conferir a essa norma, que inseriu condição de
procedibilidade, um efeito de extinção de punibilidade, quando
claramente o legislador não o pretendeu.
4.
A
retroação do § 5º do art. 171 do Código Penal alcança todos os
processos em curso, ainda sem trânsito em julgado,
sendo que essa não gera a extinção da punibilidade automática dos
processos em curso, nos quais a vítima não tenha se manifestado
favoravelmente à persecução penal. Aplicação do art. 91 da Lei
n. 9.099/1995 por analogia.
5.
O
ato jurídico perfeito e a retroatividade da lei penal mais benéfica
são direitos fundamentais de primeira geração,
previstos nos incisos XXXVI e XL do art. 5º da Constituição
Federal. Por se tratarem de direitos de origem liberal, concebidos no
contexto das revoluções liberais, voltam-se ao Estado como
limitadores de poder, impondo deveres de omissão, com o fim de
garantir esferas de autonomia e de liberdade individual. Considerar o
recebimento da denúncia como ato jurídico perfeito inverteria a
natureza dos direitos fundamentais, visto que equivaleria a permitir
que o Estado invocasse uma garantia fundamental frente a um cidadão.
6.
Ordem parcialmente concedida, confirmando-se a liminar, para
determinar a aplicação retroativa do § 5º do art. 171 do Código
Penal, inserido pela Lei n. 13.964/2019, devendo ser a vítima
intimada para manifestar interesse na continuação da persecução
penal em 30 dias, sob pena de decadência, em aplicação analógica
do art. 91 da Lei n. 9.099/1995. (Habeas Corpus nº 583.837/SC, STJ,
6ª Turma, unânime, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em
4.8.2020, publicado no DJ em 12.8.2020).
Primeiro
equívoco.
A
lei trouxe uma condição para a instauração
da
ação penal.
Se
a ação penal foi, ao tempo passado, instaurada sem
a exigência legal, essa
nova disposição (embora “mais benéfica”, para quem somente sob
esse viés visualiza a norma) não pode retroagir por uma razão
bastante simples: ela não existia quando recebida a denúncia. O ato
procedimental foi correto e integralizado segundo as exigências da
época. Há muito o entendimento (correto, diga-se) é no sentido de
que uma regra dessa natureza não tem o condão de retroagir para
desfazer o que já foi aperfeiçoado à luz do momento
processual,
que é regido pelo disposto no art. 2º do CPP (veremos a seguir o
que já disse o STF em situações verdadeiramente análogas).
Exatamente
por isso é que, em recentíssima decisão, anterior a essa acima, e
reportando-se ao preciso magistério do Professor Rogério Sanches
Cunha, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça firmou clara
posição (em sentido oposto ao que ora analisado) de que a
representação penal para fins de processamento do crime de
estelionato não
pode ser aplicado retroativamente
aos casos em que
já instaurada
a ação penal:
HABEAS
CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA.
CRIME DE PRETENDIDA APLICAÇÃO RETROATIVA DA REGRA DO § 5º DO ART.
171 DO CÓDIGO PENAL, ACRESCENTADO PELA LEI N. 13.964/2019 (PACOTE
ANTICRIME). INVIABILIDADE. ATO JURÍDICO PERFEITO. CONDIÇÃO DE
PROCEDIBILIDADE. DOUTRINA. DOSIMETRIA. PRETENSÃO DE CONVERSÃO DA
PENA CORPORAL EM MULTA. ART. 44, §2º, DO CÓDIGO PENAL.
DISCRICIONARIEDADE DO JULGADOR. WRIT
NÃO
CONHECIDO. […]
2. A Lei n. 13.964/2019, de 24 de dezembro de 2019, conhecida como
"Pacote Anticrime", alterou substancialmente a natureza da
ação penal do crime de estelionato (art. 171, § 5º, do Código
Penal), sendo, atualmente, processado mediante ação penal pública
condicionada à representação do ofendido, salvo se a vítima for:
a Administração Pública, direta ou indireta; criança ou
adolescente; pessoa com deficiência mental; maior de 70 anos de
idade ou incapaz.
3.
Observa-se que o NOVO COMANDO normativo apresenta CARÁTER HÍBRIDO,
pois, além de incluir a representação do ofendido como condição
de procedibilidade para a persecução penal, apresenta potencial
extintivo da punibilidade, sendo tal alteração passível de
aplicação retroativa por ser mais benéfica ao réu. Contudo, além
do silêncio do legislador sobre a aplicação do novo entendimento
aos processos em curso, tem-se que seus efeitos não podem atingir o
ato jurídico perfeito e acabado (oferecimento da denúncia), de modo
que a retroatividade da representação no crime de estelionato deve
se restringir à fase policial, não alcançando o processo. Do
contrário, estar-se-ia conferindo efeito distinto ao estabelecido na
nova regra, transformando-se a representação em condição de
prosseguibilidade e não procedibilidade.
Doutrina: Manual
de Direito Penal: parte especial (arts.
121
ao 361) / Rogério Sanches Cunha - 12. ed. rev., atual.
e
ampl. - Salvador: Editora JusPODIVM, 2020, p. 413. […] 6.
Habeas
corpus não
conhecido. (Habeas
Corpus n. 573.093/SC, STJ, 5ª
Turma,
unânime, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 9.6.2020,
publicado no DJ em 12.6.2020)
Segundo
equívoco.
Talvez
o mais grave.
Diz-se
que a regra deve retroagir porque seria mais benéfica, mas sua
aplicabilidade fica condicionada até o trânsito em julgado.
Ora,
não há “meia retroatividade” penal mais benéfica: ou há
retroação mais benéfica, incidindo sobre todos
os processos penais, inclusive
já julgados, ou não existe retroação.
A
“escolha” do trânsito em julgado (como “limite de retroação”)
é um critério puramente “arbitrário” diante do que dispõe a
regra da retroatividade penal mais benéfica (se esse for o
fundamento a ser utilizado).
A
propósito, a mesma 6ª Turma já decidiu sobre o tema, sem qualquer
limitação embora tratando de outra questão de fundo, mas
envolvendo a retroatividade penal mais benéfica.
Por
exemplo, no julgamento do Recurso Especial nº 1.112.371-MG (também
Relator o Ministro Sebastião Reis, 6.12.2012), acorrendo à
fundamentação de outro julgado no mesmo sentido, decidiu-se que “”a
lei mais benéfica deve retroagir aos fatos anteriores à sua
vigência, de acordo com o art. 5.º, inciso XL, da Constituição
Federal, e art. 2.º, parágrafo único, do Código Penal. Enquanto
a Carta Magna não condiciona temporalmente a retroatividade da lei
penal mais benigna, o Código Penal ressalva que, mesmo na hipótese
de trânsito em julgado da decisão condenatória, de qualquer modo,
a lei posterior mais favorável deve ser aplicada aos fatos
anteriores”.
A
contradição é evidente.
No
julgado acima, a 6ª Turma do STJ admite a retroatividade
expressamente mesmo para fatos em que já tenha havido o trânsito em
julgado (o que, dizemos nós, está correto). Entretanto, no caso sob
análise no presente texto, “condicionam” a retroatividade ao
trânsito em julgado.
Insistimos:
ou há ou não há retroatividade. O que se fez aqui nesse julgado é
uma “meia retroatividade”, com critério “escolhido” e
puramente arbitrário: o trânsito em julgado.
É
verdade que se poderia argumentar que “não teria sentido”
exigir-se uma “representação” da vítima depois de já
transitado em julgado o feito. Isso também seria absolutamente
verdadeiro também. Mas essa circunstância só reforça a tese de
que a interpretação conferida ao novo dispositivo está equivocada
e é manifestamente arbitrária.
Veja-se
que o STF entendeu (corretamente) que o art. 89 da Lei nº 9.099/95
(regra “mais benéfica” também) não poderia ser aplicado aos
casos em que já tivesse sentença prolatada.
Qual
a razão do STF para assim decidir ?
Veja-se
expressamente que, ao proferir seu voto no
julgamento do HC nº 74.305-6 (Plenário, STF), o Ministro Sepúlveda
Pertence explicitou que
“no
plano processual, o que se tem, indiscutivelmente, é a aplicação
imediata da lei nova, mas
sem retroceder no tempo para alcançar fases superadas do
procedimento em curso […]
parece-me possível levar essa possibilidade […] até a sentença.
Por quê ? Porque se trata, tipicamente [...], de um mecanismo de
disposição da ação penal. Ora, o Ministério Público não tem,
nem pode ter, disposição sobre uma sentença penal condenatória,
mormente quando, para ele, já transitada em julgado”.
O
caso aqui é similar: não se pode fazer retroceder a exigência da
representação “no tempo para alcançar fases superadas do
procedimento em curso”.
Se
assim fosse, e já dito no precedente da 5ª Turma de forma técnica
e correta, reportando-se ao magistério certeiro de Rogério Sanches
Cunha, “estar-se-ia
conferindo efeito distinto ao estabelecido
na nova regra, transformando-se a representação em condição de
prosseguibilidade e não procedibilidade“.
O
legislador escolheu um critério dizendo que, para o futuro, para
ações penais ainda
não instauradas,
seria necessária a representação.
Para
as passadas, não há se exigir, na medida em que elas foram
iniciadas segundo a lei vigente no tempo do recebimento da peça
acusatória. A condição é de procedibilidade, que foi atendida !
Repetimos:
a limitação imposta (da retroatividade penal ao trânsito em
julgado) reflete na verdade que a arbitrariedade das escolhas do
julgado, pois não possui nenhuma lógica, contrariando a escolha
política do legislador: criar uma condição de procedibilidade (e
não de prosseguibilidade) para os casos em que não
instauradas as
ações penais.
Terceiro
equívoco.
Diz-se que a “retroação
do § 5º do art. 171 do Código Penal alcança todos os processos em
curso, ainda sem trânsito em julgado, sendo que essa não gera a
extinção da punibilidade automática dos processos em curso, nos
quais a vítima não tenha se manifestado favoravelmente à
persecução penal”, e
que isso se faz por “aplicação do art. 91 da Lei n. 9.099/1995
por analogia”.
Muito
provável que a egrégia 6ª Turma não tenha atentado para o que
efetivamente
decidiu
o STF em relação ao (invocado) art. 91 da Lei nº 9.099/95, por
“aplicação analógica”.
Expliquemos,
inclusive repristinando argumentos que trouxemos para reforçar as
razões pelas quais as regras do ANPP (art. 28-A, CPP) não podem
retroagir para os casos em que a denúncia já foi recebida
anteriormente às alterações da Lei nº 13.964/2019.
A
e. 6ª Turma incorreu no mesmo equívoco técnico em dizer que, a
partir do julgamento plenário na Questão de Ordem no Inquérito
1.055, em
26.4.1996,
o STF teria
decidido que as regras da Lei nº 9.099/95 seriam (todas) retroativas
por serem mais benéficas.
A
ementa diz o seguinte (e pode induzir
realmente
a tais interpretações pela leitura exclusiva
dela,
por uma “interpretação da ementa”, mas não dos fundamentos e
do que decidido):
[…]
EXIGÊNCIA SUPERVENIENTE DE REPRESENTAÇÃO DO OFENDIDO ESTABELECIDA
PELA LEI N. 9.099/95
(ARTS. 88 E 91), QUE INSTITUIU OS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS.
AÇÃO PENAL PÚBLICA
CONDICIONADA. NORMA PENAL BENÉFICA. APLICABILIDADE IMEDIATA DO ART.
91 DA LEI N. 9.099/95
AOS PROCEDIMENTOS PENAIS ORIGINÁRIOS
INSTAURADOS PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. CRIME DE LESÕES
CORPORAIS LEVES. NECESSIDADE DE REPRESENTAÇÃO DO OFENDIDO.
AÇÃO PENAL PÚBLICA
CONDICIONADA. - A Lei n. 9.099/95,
que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais,
subordinou a perseguibilidade estatal dos delitos de lesões
corporais leves (e dos crimes de lesões culposas, também) ao
oferecimento de representação pelo ofendido ou por seu
representante legal (art. 88), condicionando, desse modo, a
iniciativa oficial do Ministério Público a delação postulatória
da vítima, mesmo naqueles procedimentos penais instaurados
em momento anterior ao da vigência do diploma legislativo em questão
(art. 91). - A lei nova,
que transforma a ação pública incondicionada em
ação penal condicionada
a representação do ofendido, gera situação de inquestionável
benefício em favor do réu, pois impede, quando ausente a delação
postulatória da vítima, tanto a instauração da persecutio
criminis in judicio
quanto o prosseguimento da ação penal anteriormente
ajuizada. Doutrina.
LEI N. 9.099/95.
CONSAGRAÇÃO DE MEDIDAS DESPENALIZADORAS. NORMAS BENÉFICAS.
RETROATIVIDADE VIRTUAL. Os processos técnicos de despenalização
abrangem, no plano do direito positivo, tanto as medidas que permitem
afastar a própria incidência da sanção penal quanto
aquelas que, inspiradas no postulado da mínima intervenção penal,
tem por objetivo evitar que a pena seja aplicada, como ocorre na
hipótese de conversão da ação pública incondicionada em
ação penal dependente
de representação do ofendido (Lei n. 9.099/95,
arts. 88 e 91). - A Lei n. 9.099/95,
que constitui o estatuto disciplinador dos Juizados Especiais, mais
do que a regulamentação normativa desses órgãos judiciários de
primeira instância, importou em expressiva transformação do
panorama penal vigente
no Brasil, criando instrumentos destinados a viabilizar,
juridicamente, processos de despenalização, com a inequívoca
finalidade de forjar um novo modelo de Justiça fundadas na própria
vontade dos sujeitos que integram a relação processual penal.
Esse novíssimo estatuto normativo, ao conferir expressão formal e
positiva às premissas ideológicas que dão suporte às medidas
despenalizadoras previstas na Lei n. 9.099/95,
atribui, de modo consequente, especial primazia aos institutos (a)
da composição
civil (art.
74, parágrafo único), (b) da transação penal (art.
76), (c) da representação nos delitos de lesões culposas ou
dolosas de natureza leve (arts. 88 e 91) e (d) da suspensão
condicional do processo (art. 89). As prescrições que consagram as
medidas despenalizadoras em causa qualificam-se como
normas penais benéficas,
necessariamente impulsionadas, quanto a sua aplicabilidade, pelo
princípio constitucional que impõe a lex
mitior
uma insuprimível carga de retroatividade virtual
e, também, de incidência imediata.
PROCEDIMENTOS PENAIS ORIGINÁRIOS
(INQUÉRITOS E AÇÕES PENAIS)
INSTAURADOS PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - CRIME DE LESÕES
CORPORAIS LEVES E DE LESÕES CULPOSAS - APLICABILIDADE
DA LEI N. 9.099/95
(ARTS. 88 E 91). - A exigência legal de representação do ofendido
nas hipóteses de crimes de lesões corporais leves e de lesões
culposas reveste-se de caráter penalmente benéfico e torna
consequentemente extensíveis aos procedimentos penais originários
instaurados perante o Supremo Tribunal Federal os preceitos inscritos
nos arts. 88 e 91 da Lei n. 9.099/95.
O âmbito de incidência das normas legais em referência - que
consagram inequívoco programa estatal de despenalização,
compatível com os fundamentos ético-jurídicos que informam os
postulados do Direito penal mínimo,
subjacentes a Lei n. 9.099/95
- ultrapassa os limites formais e orgânicos dos Juizados Especiais
Criminais, projetando-se sobre procedimentos penais instaurados
perante outros órgãos judiciários ou tribunais, eis que a ausência
de representação do ofendido qualifica-se como causa extintiva da
punibilidade, com consequente reflexo sobre a pretensão punitiva do
Estado.
Para
além de uma “interpretação da ementa”, o que disse o STF nesse
julgado ?
A
primeira questão que fica bem claro é que estavam discutindo,
primordialmente, sobre a necessidade (ou não) de representação
do
ofendido em crimes de lesões corporais em razão da norma mais
benéfica que foi instituída pelo art. 91 da Lei nº 9.099/95 (Nos
casos em que esta Lei passa a exigir representação para a
propositura da ação penal pública, o ofendido ou seu representante
legal será intimado para oferecê-la no prazo de trinta dias, sob
pena de decadência).
Essa
foi a regra “invocada” por analogia para a interpretação quanto
ao delito de estelionato (também uma condição de representação
para a instauração de ação penal, ou seja, uma condição de
procedibilidade!).
Embora
a parte final da ementa fale em inquéritos
e ações penais,
precisamos ver o que efetivamente constou da fundamentação do
julgado e sua efetiva extensão.
E
atente-se, porque também essencial: o caso em que decidido o tema
pelo Plenário do STF não
era ação penal, mas
um inquérito (ou seja, não
havia processo).
A
discussão era sobre a exigibilidade (ou não) da condição que
passou a existir (a representação) para os inquéritos
em
andamento. E corretamente o STF disse que seria exigível, pois não
recebida ainda a denúncia.
O
leading
case do
STF na Questão de Ordem no Inquérito nº 1.055 tratava de uma
investigação criminal para apurar a prática do delito de lesões
corporais previsto no art. 129, caput,
CP,
fato ocorrido no dia 19.5.1993 (aproximadamente 3 anos antes da
decisão).
Discutia-se,
primordialmente, se, pela nova
regra do
art. 91 da Lei nº 9.099/95 deveria subordinar-se a perseguibilidade
das infrações em questão (até então de ação penal pública) à
prévia
representação da vítima (similar mesmo ao caso em tela quanto ao
estelionato na forma das alterações da Lei nº 13.964/2019).
O
tema foi submetido ao plenário (por isso em questão
de ordem) exatamente
com a finalidade (única) de definir se os arts. 88 e 91 da Lei nº
9.099/95 se aplicariam aos casos originários do STF (porque se
tratava de competência penal originária,
sobre o que nada falava a nova lei, e estavam diante de inquérito
em
trâmite perante o STF).
No
caso, o relator pontuou que a representação da vítima – até
então inexigível para essa modalidade infracional – passou a
constituir uma delatio
criminis postulatória,
para
que, eventualmente,
fosse
instaurada uma
ação penal.
Assim,
disse o relator, o “ato
de delação postulatória tornou-se indispensável ao válido
ajuizamento da própria ação penal e, também, à instauração do
procedimento de investigação criminal”.
Assim, complementou, “tratando-se
de persecutio criminis em sua fase pré-processual, o respectivo
inquérito
– nos crimes em que a ação pública depender de representação –
não poderá, sem esta, ser iniciado, consoante prescreve o
ordenamento positivo.
[...]
De outro lado, e com maior razão, o próprio ajuizamento da ação
penal, pelo Ministério Público condicionar-se-á à formalização,
pelo ofendido, em
tempo oportuno,
do ato necessário de representação”
(grifamos para enfatizar que se tratava de inquérito,
em fase pré-processual).
Na
sequência reconheceu que esses institutos seriam aplicáveis não
apenas em primeiro grau, mas a todas e eventuais questões que
envolvessem prerrogativa de foro.
Assentou
que a Lei nº 9.099/95 criou instrumentos para viabilizar processos
de despenalização (não se tratava de descriminalização), abrindo
espaço para consenso.
Não
olvidando – insistimos nisso - que estava resolvendo uma questão
em que não
havia ação penal (bem
diferente do caso concreto resolvido pela 6ª Turma do STJ), referiu
que “os
institutos em questão – além de derivarem de típicas normas de
caráter híbrido, pois revestem-se de projeção eficacial tanto
sobre o plano formal, quanto sobre a esfera estritamente
penal-material, gerando, quanto a esta, consequências jurídicas que
extinguem a própria punibilidade do agente [...]” Assim,
“as prescrições que consagram as medidas despenalizadoras em
causa qualificam-se como normas penais benéficas, necessariamente
impulsionadas, quanto à sua aplicabilidade, pelo princípio
constitucional que impõe à lex mitior uma insuprimível carga de
retroatividade virtual e, também, de incidência imediata”.
Dentro
do
limite da discussão posta
(exigir-se ou não representação do ofendido e se incidia sobre
casos com prerrogativa
de foro,
e não sobre a aplicabilidade da transação penal ou da suspensão
processual), concluiu que, “independentemente
do órgão judiciário ou da instância jurisdicional perante os
quais tenham curso ou hajam sido instaurados os procedimentos penais
que se lhes aplicam, de imediato as normas materiais de conteúdo
penalmente benéfico, como aquelas consubstanciadas nos arts. 88 e 91
da Lei nº 9.099/95, concernentes à necessidade de representação
do ofendido nos delitos de lesões corporais leves ou de lesões
corporais culposas”.
Veja-se
que, no excerto acima, não se fala em ações
penais,
mas em procedimentos
penais,
que são coisas bem diversas (exatamente porque ali se tratava de um
procedimento
de investigação penal,
não de ação penal). Também fala em normas de cunho estritamente
material.
Tanto é assim que, na sequência, novamente referiu que a
“possibilidade
de estender os preceitos em causa a procedimentos penais instaurados
perante outros órgãos judiciários [...] decorre [...] do fato de
que as regras consubstanciadas nos arts. 88 e 91 da Lei nº 9.099/95
qualificam-se como prescrições de natureza penal e de conteúdo
material, veiculadoras de uma específica modalidade de
despenalização”.
A
sua conclusão foi no sentido de, unicamente,
determinar a suspensão “desse
procedimento penal”
(fala de novo em procedimento
penal, o
inquérito) “para
que se proceda, no caso, nos termos do art. 91 da Lei nº 9.099/95, à
intimação de [...], vítima do delito de lesões corporais leves
[...] a fim de que, no prazo de 30 dias, querendo, ofereça, ou não,
a necessária representação, sob pena de decadência”.
A
partir
do que pontuado, o que se verifica que foi efetivamente decidido e
quais conclusões nos importam aqui ?
Em
nenhum momento o STF assentou, nesse julgado, que as regras do art.
76 e 89 da Lei nº 9.099/95 se aplicariam às ações penais em
andamento.
Como visto, o tema central era outro (da exigibilidade ou não de
representação o ofendido em caso que tramitava sem
ação penal, era
um inquérito, ou, na lítera do julgado, um procedimento
processual penal).
O
STF expressamente distinguiu hipóteses de procedimento
penal (investigação)
e ação
penal.
Reconheceu-se
(corretamente) que, de forma geral, as regras da Lei nº 9.099/95
possuem caráter mais benéfico sob o aspecto penal.
Em
nenhum momento assentou que as regras referentes à transação
penal seriam
aplicadas de forma retroativa e de forma indistinta.
Outra
decisão relevante do STF que merece análise é aquela tomada na ADI
nº 1.719 (mérito), de 18.6.2007,
cuja ementa tem o seguinte teor:
PENAL
E PROCESSO PENAL. JUIZADOS ESPECIAIS. ART. 90 DA LEI 9.099/1995.
APLICABILIDADE. INTERPRETAÇÃO CONFORME PARA EXCLUIR AS NORMAS DE
DIREITO PENAL MAIS FAVORÁVEIS AO RÉU.
O
art. 90 da Lei 9.099/1995 determina que as disposições da lei dos
Juizados Especiais não
são aplicáveis aos processos nos quais a fase de instrução já
tenha sido iniciada.
Em
se tratando de normas de natureza processual, a exceção
estabelecida por lei à regra geral contida no art. 2º do CPP não
padece de vício de inconstitucionalidade.
Contudo,
as normas de direito penal que tenham conteúdo mais benéfico aos
réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o
art. 5º, XL da Constituição Federal.
Interpretação
conforme ao art. 90 da Lei 9.099/1995 para excluir de sua abrangência
as normas de direito penal mais favoráveis aos réus contidas nessa
lei.
O
art. 90 da Lei nº 9.099/95 refere que “as disposições
desta lei não se aplicam aos processos penais cuja instrução já
tiver sido iniciada”.
Essa é uma regra exclusivamente processual. Mas daí não se pode
inferir (por dedução) que o STF teria permitido a incidência dos
dispositivos de conteúdo penal, retroativamente, afastando a
limitação temporal (processual) do disposto no art. 90.
Analisemos
a fundamentação novamente
do
voto-condutor.
Disse
que “é
importante observar, contudo, que a Lei 9.099/1995 tem natureza
mista: é composta por normas de natureza processual e por normas de
conteúdo material de direito penal. Portanto, para a concreta
aplicação do princípio da retroatividade da norma penal benéfica
(art. 5º, XL da CF/88), não poderia o legislador conferir o mesmo
tratamento para todas as normas inseridas na lei dos juizados
especiais”.
O
voto se reportou ainda ao que decidido no Inquérito nº 1.055-DF,
citando (apenas) a segunda parte da sua ementa (antes vista, mas no
contexto
geral, como demonstramos),
dizendo que o Tribunal assentou o entendimento de que “as
normas da Lei 9.099/1995 de natureza penal e conteúdo mais benéfico
ao réu devem retroagir para alcançar os processos que já tiverem a
instrução iniciada”.
Diante
de uma regra exclusivamente
processual,
a
decisão tomada foi para o fim de “dar
interpretação conforme ao art. 90 da Lei 9.099/1995 do caráter
intertemporal do dispositivo ora atacado, voto pela confirmação da
cautelar, para dar interpretação conforme ao art. 90 da Lei
9.099/1995, de modo a impedir que dele se extraiam conclusões
conducentes a negar a aplicabilidade imediatamente e retroativa às
normas de direito penal mais favoráveis aos réus contidas nessa
lei”.
Alertamos
ainda para o que disse o (então) relator da Medida Cautelar na ADI
1.719, Ministro Moreira Alves, em seu voto proferido em 3.12.1997:
“não
há dúvida da relevância da fundamentação do pedido de liminar no
tocante a que o disposto no artigo 90 da Lei 9.099, de 26.5.95, só
se aplica às normas estritamente processuais desse diploma legal,
não alcançando as de conteúdo penal, em virtude do princípio
constitucional da retroatividade da lei penal mais benigna [...]”.
E
o Ministro Marco Aurélio, ao acompanhar o deferimento da liminar,
bem destacou: “A
Lei nº 9.099/95 possui preceitos mistos, que têm carga material e
instrumental. O voto do Ministro-Relator já explicita esse aspecto
ao referir-se à aplicabilidade do disposto no art. 90 somente quanto
às normas estritamente processuais.
Está
bem claro que o STF examinou a limitação imposta pelo art. 90 da
Lei nº 9.099/95 (norma estritamente processual) em relação às
(autônomas) regras exclusivamente
penais da
Lei nº 9.099/95, excluindo a extensão da decisão (não
a aplicando)
para os casos de regras híbridas.
Isso
está hialino (e correto, segundo pensamos).
Portanto,
de forma conclusiva, não há como se aplicar a (nova) exigência
legal aos casos em que a ação penal foi instaurada segundo as
regras anteriores à vigência da Lei nº 13.964/2019.
De
qualquer modo, e na linha do que já destacamos em texto anterior
quando tratamos da irretroatividade do ANPP para situações em que
já recebida a denúncia, fazemos uma ressalva final (que respeitamos
quem a adota, embora entendamos equivocada): se for aplicada de forma
isolada
a tese de que a representação da vítima para os delitos de
estelionato é unicamente
mais benéfica sob o aspecto penal (desvinculando-a
da limitação temporal feita pelo legislador, pois criou uma
condição de procedibilidade), essa retroatividade penal implica que
essa exigência deva incidir, necessariamente, sobre todos os
processos penais, inclusive com trânsito em julgado.
Não
há “meia retroatividade penal” mais benéfica.
É
preciso pelo menos manter a dogmática lógica e coerente.