quarta-feira, 19 de agosto de 2020

A inaplicabilidade retroativa da representação da vítima nos delitos de estelionato de acordo com a Lei nº 13.964/2019 para ações penais já instauradas

 
Recentemente a 6ª Turma do STJ decidiu que a exigência da “representação” para os delitos de estelionato, introduzida no Código Penal, incidiria sobre as ações penais em andamento, notadamente em razão da retroatividade da regra mais benéfica (condicionada ao trânsito em julgado), bem assim invocado a aplicação analógica do que o STF decidiu em relação ao art. 91 da Lei nº 9.099/95.
A regra aplicada em o seguinte teor:
Art. 171, CP: […]
§ 5º Somente se procede mediante representação, salvo se a vítima for: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
I - a Administração Pública, direta ou indireta; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
II - criança ou adolescente;(Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
III - pessoa com deficiência mental; ou (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
 IV - maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz.(Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
Respeitosamente, o equívoco está em três partes fundamentais da argumentação utilizada no julgamento colegiado.
Vamos primeiro à ementa do julgado do STJ:
HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. PACOTE ANTICRIME. LEI N. 13.964/2019. § 5º DO ART. 171 DO CP. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO COMO REGRA. NOVA LEI MAIS BENÉFICA. RETROATIVIDADE. ART. 5º, XL, DA CF. APLICAÇÃO DO ART. 91 DA LEI N. 9.099/1995 POR ANALOGIA.
1. As normas que disciplinam a ação penal, mesmo aquelas constantes do Código de Processo Penal, são de natureza mista, regidas pelos cânones da retroatividade e da ultratividade benéficas, pois disciplinam o exercício da pretensão punitiva.
2. O processo penal tutela dois direitos de natureza pública: tanto os direitos fundamentais do acusado, voltados para a liberdade, quanto a pretensão punitiva. Não interessa ao Estado punir inocentes, tampouco absolver culpados, embora essa última solução se afigure menos danosa.
3. Não é possível conferir a essa norma, que inseriu condição de procedibilidade, um efeito de extinção de punibilidade, quando claramente o legislador não o pretendeu.
4. A retroação do § 5º do art. 171 do Código Penal alcança todos os processos em curso, ainda sem trânsito em julgado, sendo que essa não gera a extinção da punibilidade automática dos processos em curso, nos quais a vítima não tenha se manifestado favoravelmente à persecução penal. Aplicação do art. 91 da Lei n. 9.099/1995 por analogia.
5. O ato jurídico perfeito e a retroatividade da lei penal mais benéfica são direitos fundamentais de primeira geração, previstos nos incisos XXXVI e XL do art. 5º da Constituição Federal. Por se tratarem de direitos de origem liberal, concebidos no contexto das revoluções liberais, voltam-se ao Estado como limitadores de poder, impondo deveres de omissão, com o fim de garantir esferas de autonomia e de liberdade individual. Considerar o recebimento da denúncia como ato jurídico perfeito inverteria a natureza dos direitos fundamentais, visto que equivaleria a permitir que o Estado invocasse uma garantia fundamental frente a um cidadão.
6. Ordem parcialmente concedida, confirmando-se a liminar, para determinar a aplicação retroativa do § 5º do art. 171 do Código Penal, inserido pela Lei n. 13.964/2019, devendo ser a vítima intimada para manifestar interesse na continuação da persecução penal em 30 dias, sob pena de decadência, em aplicação analógica do art. 91 da Lei n. 9.099/1995. (Habeas Corpus nº 583.837/SC, STJ, 6ª Turma, unânime, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 4.8.2020, publicado no DJ em 12.8.2020).
Primeiro equívoco.
A lei trouxe uma condição para a instauração da ação penal.
Se a ação penal foi, ao tempo passado, instaurada sem a exigência legal, essa nova disposição (embora “mais benéfica”, para quem somente sob esse viés visualiza a norma) não pode retroagir por uma razão bastante simples: ela não existia quando recebida a denúncia. O ato procedimental foi correto e integralizado segundo as exigências da época. Há muito o entendimento (correto, diga-se) é no sentido de que uma regra dessa natureza não tem o condão de retroagir para desfazer o que já foi aperfeiçoado à luz do momento processual, que é regido pelo disposto no art. 2º do CPP (veremos a seguir o que já disse o STF em situações verdadeiramente análogas).
Exatamente por isso é que, em recentíssima decisão, anterior a essa acima, e reportando-se ao preciso magistério do Professor Rogério Sanches Cunha, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça firmou clara posição (em sentido oposto ao que ora analisado) de que a representação penal para fins de processamento do crime de estelionato não pode ser aplicado retroativamente aos casos em que já instaurada a ação penal:
HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. CRIME DE PRETENDIDA APLICAÇÃO RETROATIVA DA REGRA DO § 5º DO ART. 171 DO CÓDIGO PENAL, ACRESCENTADO PELA LEI N. 13.964/2019 (PACOTE ANTICRIME). INVIABILIDADE. ATO JURÍDICO PERFEITO. CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE. DOUTRINA. DOSIMETRIA. PRETENSÃO DE CONVERSÃO DA PENA CORPORAL EM MULTA. ART. 44, §2º, DO CÓDIGO PENAL. DISCRICIONARIEDADE DO JULGADOR. WRIT NÃO CONHECIDO. […] 2. A Lei n. 13.964/2019, de 24 de dezembro de 2019, conhecida como "Pacote Anticrime", alterou substancialmente a natureza da ação penal do crime de estelionato (art. 171, § 5º, do Código Penal), sendo, atualmente, processado mediante ação penal pública condicionada à representação do ofendido, salvo se a vítima for: a Administração Pública, direta ou indireta; criança ou adolescente; pessoa com deficiência mental; maior de 70 anos de idade ou incapaz.
3. Observa-se que o NOVO COMANDO normativo apresenta CARÁTER HÍBRIDO, pois, além de incluir a representação do ofendido como condição de procedibilidade para a persecução penal, apresenta potencial extintivo da punibilidade, sendo tal alteração passível de aplicação retroativa por ser mais benéfica ao réu. Contudo, além do silêncio do legislador sobre a aplicação do novo entendimento aos processos em curso, tem-se que seus efeitos não podem atingir o ato jurídico perfeito e acabado (oferecimento da denúncia), de modo que a retroatividade da representação no crime de estelionato deve se restringir à fase policial, não alcançando o processo. Do contrário, estar-se-ia conferindo efeito distinto ao estabelecido na nova regra, transformando-se a representação em condição de prosseguibilidade e não procedibilidade. Doutrina: Manual de Direito Penal: parte especial (arts. 121 ao 361) / Rogério Sanches Cunha - 12. ed. rev., atual. e ampl. - Salvador: Editora JusPODIVM, 2020, p. 413. […] 6. Habeas corpus não conhecido. (Habeas Corpus n. 573.093/SC, STJ, 5ª Turma, unânime, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 9.6.2020, publicado no DJ em 12.6.2020)
Segundo equívoco.
Talvez o mais grave.
Diz-se que a regra deve retroagir porque seria mais benéfica, mas sua aplicabilidade fica condicionada até o trânsito em julgado.
Ora, não há “meia retroatividade” penal mais benéfica: ou há retroação mais benéfica, incidindo sobre todos os processos penais, inclusive já julgados, ou não existe retroação.
A “escolha” do trânsito em julgado (como “limite de retroação”) é um critério puramente “arbitrário” diante do que dispõe a regra da retroatividade penal mais benéfica (se esse for o fundamento a ser utilizado).
A propósito, a mesma 6ª Turma já decidiu sobre o tema, sem qualquer limitação embora tratando de outra questão de fundo, mas envolvendo a retroatividade penal mais benéfica.
Por exemplo, no julgamento do Recurso Especial nº 1.112.371-MG (também Relator o Ministro Sebastião Reis, 6.12.2012), acorrendo à fundamentação de outro julgado no mesmo sentido, decidiu-se que “”a lei mais benéfica deve retroagir aos fatos anteriores à sua vigência, de acordo com o art. 5.º, inciso XL, da Constituição Federal, e art. 2.º, parágrafo único, do Código Penal. Enquanto a Carta Magna não condiciona temporalmente a retroatividade da lei penal mais benigna, o Código Penal ressalva que, mesmo na hipótese de trânsito em julgado da decisão condenatória, de qualquer modo, a lei posterior mais favorável deve ser aplicada aos fatos anteriores.
A contradição é evidente.
No julgado acima, a 6ª Turma do STJ admite a retroatividade expressamente mesmo para fatos em que já tenha havido o trânsito em julgado (o que, dizemos nós, está correto). Entretanto, no caso sob análise no presente texto, “condicionam” a retroatividade ao trânsito em julgado.
Insistimos: ou há ou não há retroatividade. O que se fez aqui nesse julgado é uma “meia retroatividade”, com critério “escolhido” e puramente arbitrário: o trânsito em julgado.
É verdade que se poderia argumentar que “não teria sentido” exigir-se uma “representação” da vítima depois de já transitado em julgado o feito. Isso também seria absolutamente verdadeiro também. Mas essa circunstância só reforça a tese de que a interpretação conferida ao novo dispositivo está equivocada e é manifestamente arbitrária.
Veja-se que o STF entendeu (corretamente) que o art. 89 da Lei nº 9.099/95 (regra “mais benéfica” também) não poderia ser aplicado aos casos em que já tivesse sentença prolatada.
Qual a razão do STF para assim decidir ?
Veja-se expressamente que, ao proferir seu voto no julgamento do HC nº 74.305-6 (Plenário, STF), o Ministro Sepúlveda Pertence explicitou queno plano processual, o que se tem, indiscutivelmente, é a aplicação imediata da lei nova, mas sem retroceder no tempo para alcançar fases superadas do procedimento em curso […] parece-me possível levar essa possibilidade […] até a sentença. Por quê ? Porque se trata, tipicamente [...], de um mecanismo de disposição da ação penal. Ora, o Ministério Público não tem, nem pode ter, disposição sobre uma sentença penal condenatória, mormente quando, para ele, já transitada em julgado”.
O caso aqui é similar: não se pode fazer retroceder a exigência da representação “no tempo para alcançar fases superadas do procedimento em curso”.
Se assim fosse, e já dito no precedente da 5ª Turma de forma técnica e correta, reportando-se ao magistério certeiro de Rogério Sanches Cunha, “estar-se-ia conferindo efeito distinto ao estabelecido na nova regra, transformando-se a representação em condição de prosseguibilidade e não procedibilidade“.
O legislador escolheu um critério dizendo que, para o futuro, para ações penais ainda não instauradas, seria necessária a representação.
Para as passadas, não há se exigir, na medida em que elas foram iniciadas segundo a lei vigente no tempo do recebimento da peça acusatória. A condição é de procedibilidade, que foi atendida !
Repetimos: a limitação imposta (da retroatividade penal ao trânsito em julgado) reflete na verdade que a arbitrariedade das escolhas do julgado, pois não possui nenhuma lógica, contrariando a escolha política do legislador: criar uma condição de procedibilidade (e não de prosseguibilidade) para os casos em que não instauradas as ações penais.
Terceiro equívoco. Diz-se que a “retroação do § 5º do art. 171 do Código Penal alcança todos os processos em curso, ainda sem trânsito em julgado, sendo que essa não gera a extinção da punibilidade automática dos processos em curso, nos quais a vítima não tenha se manifestado favoravelmente à persecução penal”, e que isso se faz por “aplicação do art. 91 da Lei n. 9.099/1995 por analogia”.
Muito provável que a egrégia 6ª Turma não tenha atentado para o que efetivamente decidiu o STF em relação ao (invocado) art. 91 da Lei nº 9.099/95, por “aplicação analógica”.
Expliquemos, inclusive repristinando argumentos que trouxemos para reforçar as razões pelas quais as regras do ANPP (art. 28-A, CPP) não podem retroagir para os casos em que a denúncia já foi recebida anteriormente às alterações da Lei nº 13.964/2019.
A e. 6ª Turma incorreu no mesmo equívoco técnico em dizer que, a partir do julgamento plenário na Questão de Ordem no Inquérito 1.055, em 26.4.1996, o STF teria decidido que as regras da Lei nº 9.099/95 seriam (todas) retroativas por serem mais benéficas.
A ementa diz o seguinte (e pode induzir realmente a tais interpretações pela leitura exclusiva dela, por uma “interpretação da ementa”, mas não dos fundamentos e do que decidido):

[…] EXIGÊNCIA SUPERVENIENTE DE REPRESENTAÇÃO DO OFENDIDO ESTABELECIDA PELA LEI N. 9.099/95 (ARTS. 88 E 91), QUE INSTITUIU OS JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA. NORMA PENAL BENÉFICA. APLICABILIDADE IMEDIATA DO ART. 91 DA LEI N. 9.099/95 AOS PROCEDIMENTOS PENAIS ORIGINÁRIOS INSTAURADOS PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. CRIME DE LESÕES CORPORAIS LEVES. NECESSIDADE DE REPRESENTAÇÃO DO OFENDIDO. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA. - A Lei n. 9.099/95, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, subordinou a perseguibilidade estatal dos delitos de lesões corporais leves (e dos crimes de lesões culposas, também) ao oferecimento de representação pelo ofendido ou por seu representante legal (art. 88), condicionando, desse modo, a iniciativa oficial do Ministério Público a delação postulatória da vítima, mesmo naqueles procedimentos penais instaurados em momento anterior ao da vigência do diploma legislativo em questão (art. 91). - A lei nova, que transforma a ação pública incondicionada em ação penal condicionada a representação do ofendido, gera situação de inquestionável benefício em favor do réu, pois impede, quando ausente a delação postulatória da vítima, tanto a instauração da persecutio criminis in judicio quanto o prosseguimento da ação penal anteriormente ajuizada. Doutrina.
LEI N. 9.099/95. CONSAGRAÇÃO DE MEDIDAS DESPENALIZADORAS. NORMAS BENÉFICAS. RETROATIVIDADE VIRTUAL. Os processos técnicos de despenalização abrangem, no plano do direito positivo, tanto as medidas que permitem afastar a própria incidência da sanção penal quanto aquelas que, inspiradas no postulado da mínima intervenção penal, tem por objetivo evitar que a pena seja aplicada, como ocorre na hipótese de conversão da ação pública incondicionada em ação penal dependente de representação do ofendido (Lei n. 9.099/95, arts. 88 e 91). - A Lei n. 9.099/95, que constitui o estatuto disciplinador dos Juizados Especiais, mais do que a regulamentação normativa desses órgãos judiciários de primeira instância, importou em expressiva transformação do panorama penal vigente no Brasil, criando instrumentos destinados a viabilizar, juridicamente, processos de despenalização, com a inequívoca finalidade de forjar um novo modelo de Justiça fundadas na própria vontade dos sujeitos que integram a relação processual penal. Esse novíssimo estatuto normativo, ao conferir expressão formal e positiva às premissas ideológicas que dão suporte às medidas despenalizadoras previstas na Lei n. 9.099/95, atribui, de modo consequente, especial primazia aos institutos (a) da composição civil (art. 74, parágrafo único), (b) da transação penal (art. 76), (c) da representação nos delitos de lesões culposas ou dolosas de natureza leve (arts. 88 e 91) e (d) da suspensão condicional do processo (art. 89). As prescrições que consagram as medidas despenalizadoras em causa qualificam-se como normas penais benéficas, necessariamente impulsionadas, quanto a sua aplicabilidade, pelo princípio constitucional que impõe a lex mitior uma insuprimível carga de retroatividade virtual e, também, de incidência imediata.
PROCEDIMENTOS PENAIS ORIGINÁRIOS (INQUÉRITOS E AÇÕES PENAIS) INSTAURADOS PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - CRIME DE LESÕES CORPORAIS LEVES E DE LESÕES CULPOSAS - APLICABILIDADE DA LEI N. 9.099/95 (ARTS. 88 E 91). - A exigência legal de representação do ofendido nas hipóteses de crimes de lesões corporais leves e de lesões culposas reveste-se de caráter penalmente benéfico e torna consequentemente extensíveis aos procedimentos penais originários instaurados perante o Supremo Tribunal Federal os preceitos inscritos nos arts. 88 e 91 da Lei n. 9.099/95. O âmbito de incidência das normas legais em referência - que consagram inequívoco programa estatal de despenalização, compatível com os fundamentos ético-jurídicos que informam os postulados do Direito penal mínimo, subjacentes a Lei n. 9.099/95 - ultrapassa os limites formais e orgânicos dos Juizados Especiais Criminais, projetando-se sobre procedimentos penais instaurados perante outros órgãos judiciários ou tribunais, eis que a ausência de representação do ofendido qualifica-se como causa extintiva da punibilidade, com consequente reflexo sobre a pretensão punitiva do Estado.
Para além de uma “interpretação da ementa”, o que disse o STF nesse julgado ?
A primeira questão que fica bem claro é que estavam discutindo, primordialmente, sobre a necessidade (ou não) de representação do ofendido em crimes de lesões corporais em razão da norma mais benéfica que foi instituída pelo art. 91 da Lei nº 9.099/95 (Nos casos em que esta Lei passa a exigir representação para a propositura da ação penal pública, o ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecê-la no prazo de trinta dias, sob pena de decadência).
Essa foi a regra “invocada” por analogia para a interpretação quanto ao delito de estelionato (também uma condição de representação para a instauração de ação penal, ou seja, uma condição de procedibilidade!).
Embora a parte final da ementa fale em inquéritos e ações penais, precisamos ver o que efetivamente constou da fundamentação do julgado e sua efetiva extensão.
E atente-se, porque também essencial: o caso em que decidido o tema pelo Plenário do STF não era ação penal, mas um inquérito (ou seja, não havia processo).
A discussão era sobre a exigibilidade (ou não) da condição que passou a existir (a representação) para os inquéritos em andamento. E corretamente o STF disse que seria exigível, pois não recebida ainda a denúncia.
O leading case do STF na Questão de Ordem no Inquérito nº 1.055 tratava de uma investigação criminal para apurar a prática do delito de lesões corporais previsto no art. 129, caput, CP, fato ocorrido no dia 19.5.1993 (aproximadamente 3 anos antes da decisão).
Discutia-se, primordialmente, se, pela nova regra do art. 91 da Lei nº 9.099/95 deveria subordinar-se a perseguibilidade das infrações em questão (até então de ação penal pública) à prévia representação da vítima (similar mesmo ao caso em tela quanto ao estelionato na forma das alterações da Lei nº 13.964/2019).
O tema foi submetido ao plenário (por isso em questão de ordem) exatamente com a finalidade (única) de definir se os arts. 88 e 91 da Lei nº 9.099/95 se aplicariam aos casos originários do STF (porque se tratava de competência penal originária, sobre o que nada falava a nova lei, e estavam diante de inquérito em trâmite perante o STF).
No caso, o relator pontuou que a representação da vítima – até então inexigível para essa modalidade infracional – passou a constituir uma delatio criminis postulatória, para que, eventualmente, fosse instaurada uma ação penal.
Assim, disse o relator, o “ato de delação postulatória tornou-se indispensável ao válido ajuizamento da própria ação penal e, também, à instauração do procedimento de investigação criminal”. Assim, complementou, “tratando-se de persecutio criminis em sua fase pré-processual, o respectivo inquérito – nos crimes em que a ação pública depender de representação – não poderá, sem esta, ser iniciado, consoante prescreve o ordenamento positivo. [...] De outro lado, e com maior razão, o próprio ajuizamento da ação penal, pelo Ministério Público condicionar-se-á à formalização, pelo ofendido, em tempo oportuno, do ato necessário de representação” (grifamos para enfatizar que se tratava de inquérito, em fase pré-processual).
Na sequência reconheceu que esses institutos seriam aplicáveis não apenas em primeiro grau, mas a todas e eventuais questões que envolvessem prerrogativa de foro.
Assentou que a Lei nº 9.099/95 criou instrumentos para viabilizar processos de despenalização (não se tratava de descriminalização), abrindo espaço para consenso.
Não olvidando – insistimos nisso - que estava resolvendo uma questão em que não havia ação penal (bem diferente do caso concreto resolvido pela 6ª Turma do STJ), referiu que “os institutos em questão – além de derivarem de típicas normas de caráter híbrido, pois revestem-se de projeção eficacial tanto sobre o plano formal, quanto sobre a esfera estritamente penal-material, gerando, quanto a esta, consequências jurídicas que extinguem a própria punibilidade do agente [...]” Assim, “as prescrições que consagram as medidas despenalizadoras em causa qualificam-se como normas penais benéficas, necessariamente impulsionadas, quanto à sua aplicabilidade, pelo princípio constitucional que impõe à lex mitior uma insuprimível carga de retroatividade virtual e, também, de incidência imediata”.
Dentro do limite da discussão posta (exigir-se ou não representação do ofendido e se incidia sobre casos com prerrogativa de foro, e não sobre a aplicabilidade da transação penal ou da suspensão processual), concluiu que, “independentemente do órgão judiciário ou da instância jurisdicional perante os quais tenham curso ou hajam sido instaurados os procedimentos penais que se lhes aplicam, de imediato as normas materiais de conteúdo penalmente benéfico, como aquelas consubstanciadas nos arts. 88 e 91 da Lei nº 9.099/95, concernentes à necessidade de representação do ofendido nos delitos de lesões corporais leves ou de lesões corporais culposas”.
Veja-se que, no excerto acima, não se fala em ações penais, mas em procedimentos penais, que são coisas bem diversas (exatamente porque ali se tratava de um procedimento de investigação penal, não de ação penal). Também fala em normas de cunho estritamente material. Tanto é assim que, na sequência, novamente referiu que a “possibilidade de estender os preceitos em causa a procedimentos penais instaurados perante outros órgãos judiciários [...] decorre [...] do fato de que as regras consubstanciadas nos arts. 88 e 91 da Lei nº 9.099/95 qualificam-se como prescrições de natureza penal e de conteúdo material, veiculadoras de uma específica modalidade de despenalização”.
A sua conclusão foi no sentido de, unicamente, determinar a suspensão “desse procedimento penal” (fala de novo em procedimento penal, o inquérito) “para que se proceda, no caso, nos termos do art. 91 da Lei nº 9.099/95, à intimação de [...], vítima do delito de lesões corporais leves [...] a fim de que, no prazo de 30 dias, querendo, ofereça, ou não, a necessária representação, sob pena de decadência”.
A partir do que pontuado, o que se verifica que foi efetivamente decidido e quais conclusões nos importam aqui ?
Em nenhum momento o STF assentou, nesse julgado, que as regras do art. 76 e 89 da Lei nº 9.099/95 se aplicariam às ações penais em andamento. Como visto, o tema central era outro (da exigibilidade ou não de representação o ofendido em caso que tramitava sem ação penal, era um inquérito, ou, na lítera do julgado, um procedimento processual penal).
O STF expressamente distinguiu hipóteses de procedimento penal (investigação) e ação penal.
Reconheceu-se (corretamente) que, de forma geral, as regras da Lei nº 9.099/95 possuem caráter mais benéfico sob o aspecto penal.
Em nenhum momento assentou que as regras referentes à transação penal seriam aplicadas de forma retroativa e de forma indistinta.
Outra decisão relevante do STF que merece análise é aquela tomada na ADI nº 1.719 (mérito), de 18.6.2007, cuja ementa tem o seguinte teor:
PENAL E PROCESSO PENAL. JUIZADOS ESPECIAIS. ART. 90 DA LEI 9.099/1995. APLICABILIDADE. INTERPRETAÇÃO CONFORME PARA EXCLUIR AS NORMAS DE DIREITO PENAL MAIS FAVORÁVEIS AO RÉU.
O art. 90 da Lei 9.099/1995 determina que as disposições da lei dos Juizados Especiais não são aplicáveis aos processos nos quais a fase de instrução já tenha sido iniciada.
Em se tratando de normas de natureza processual, a exceção estabelecida por lei à regra geral contida no art. 2º do CPP não padece de vício de inconstitucionalidade.
Contudo, as normas de direito penal que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o art. 5º, XL da Constituição Federal.
Interpretação conforme ao art. 90 da Lei 9.099/1995 para excluir de sua abrangência as normas de direito penal mais favoráveis aos réus contidas nessa lei.
O art. 90 da Lei nº 9.099/95 refere que “as disposições desta lei não se aplicam aos processos penais cuja instrução já tiver sido iniciada”. Essa é uma regra exclusivamente processual. Mas daí não se pode inferir (por dedução) que o STF teria permitido a incidência dos dispositivos de conteúdo penal, retroativamente, afastando a limitação temporal (processual) do disposto no art. 90.
Analisemos a fundamentação novamente do voto-condutor.
Disse que “é importante observar, contudo, que a Lei 9.099/1995 tem natureza mista: é composta por normas de natureza processual e por normas de conteúdo material de direito penal. Portanto, para a concreta aplicação do princípio da retroatividade da norma penal benéfica (art. 5º, XL da CF/88), não poderia o legislador conferir o mesmo tratamento para todas as normas inseridas na lei dos juizados especiais”.
O voto se reportou ainda ao que decidido no Inquérito nº 1.055-DF, citando (apenas) a segunda parte da sua ementa (antes vista, mas no contexto geral, como demonstramos), dizendo que o Tribunal assentou o entendimento de que “as normas da Lei 9.099/1995 de natureza penal e conteúdo mais benéfico ao réu devem retroagir para alcançar os processos que já tiverem a instrução iniciada”.
Diante de uma regra exclusivamente processual, a decisão tomada foi para o fim de “dar interpretação conforme ao art. 90 da Lei 9.099/1995 do caráter intertemporal do dispositivo ora atacado, voto pela confirmação da cautelar, para dar interpretação conforme ao art. 90 da Lei 9.099/1995, de modo a impedir que dele se extraiam conclusões conducentes a negar a aplicabilidade imediatamente e retroativa às normas de direito penal mais favoráveis aos réus contidas nessa lei”.
Alertamos ainda para o que disse o (então) relator da Medida Cautelar na ADI 1.719, Ministro Moreira Alves, em seu voto proferido em 3.12.1997: “não há dúvida da relevância da fundamentação do pedido de liminar no tocante a que o disposto no artigo 90 da Lei 9.099, de 26.5.95, só se aplica às normas estritamente processuais desse diploma legal, não alcançando as de conteúdo penal, em virtude do princípio constitucional da retroatividade da lei penal mais benigna [...]”.
E o Ministro Marco Aurélio, ao acompanhar o deferimento da liminar, bem destacou: “A Lei nº 9.099/95 possui preceitos mistos, que têm carga material e instrumental. O voto do Ministro-Relator já explicita esse aspecto ao referir-se à aplicabilidade do disposto no art. 90 somente quanto às normas estritamente processuais.
Está bem claro que o STF examinou a limitação imposta pelo art. 90 da Lei nº 9.099/95 (norma estritamente processual) em relação às (autônomas) regras exclusivamente penais da Lei nº 9.099/95, excluindo a extensão da decisão (não a aplicando) para os casos de regras híbridas. Isso está hialino (e correto, segundo pensamos).
Portanto, de forma conclusiva, não há como se aplicar a (nova) exigência legal aos casos em que a ação penal foi instaurada segundo as regras anteriores à vigência da Lei nº 13.964/2019.
De qualquer modo, e na linha do que já destacamos em texto anterior quando tratamos da irretroatividade do ANPP para situações em que já recebida a denúncia, fazemos uma ressalva final (que respeitamos quem a adota, embora entendamos equivocada): se for aplicada de forma isolada a tese de que a representação da vítima para os delitos de estelionato é unicamente mais benéfica sob o aspecto penal (desvinculando-a da limitação temporal feita pelo legislador, pois criou uma condição de procedibilidade), essa retroatividade penal implica que essa exigência deva incidir, necessariamente, sobre todos os processos penais, inclusive com trânsito em julgado.
Não há “meia retroatividade penal” mais benéfica.
É preciso pelo menos manter a dogmática lógica e coerente.



A inaplicabilidade retroativa da representação da vítima nos delitos de estelionato de acordo com a Lei nº 13.964/2019 para ações penais já instauradas

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